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A Maior das religiões

 Seus dogmas são sempre precedidos de um ‘todo mundo sabe’ tão forte, que nem precisa ser dito.

Ter uma religião é acreditar profundamente em verdades indiscutíveis e pautar seu comportamento e seu pensamento por essas verdades. As religiões formais enunciam essas verdades, esses dogmas, de maneira clara, têm livros onde as listam, como a Bíblia e o Corão.
A maior de todas as religiões, no entanto, não fala abertamente de seus dogmas. Mesmo assim, seus devotos acreditam neles de maneira muito mais profunda e inquestionável do que o maior dos cristãos crê nos seus.
Essa religião se chama “senso comum”. É fascinante como a catequese do senso comum é realizada, como é eficiente e como passa despercebida. Seus catequistas são todos os que repetem sem cessar suas “verdades”, ou seja, somos todos nós. É a religião mais boca a boca, a menos percebida e a mais poderosa de todas. 
Somos treinados nela desde a mais tenra infância. Nossa ingenuidade infantil aceita seus dogmas grosseiros e, quando eles caducam, são substituídos por outros mais aceitáveis, mas sempre precedidos de um “todo mundo sabe disso” tão forte, que não precisa ser dito.
Ninguém precisa explicar o notável “mãe é mãe” (não importa o que ela faça, tem que ser amada), nem o que é “namorar” (qualquer adolescente está com as regras na ponta da língua para cobrar ou culpar o outro).
Ela se baseia num programa primitivo da espécie, chamado “pensamento mágico”: tudo que acontece tem uma razão e um culpado. O pai de uma amiga corria a casa gritando “Quem queimou esta lâmpada?”, e isso fazia sentido para os filhos. Seus devotos creem que falar certas palavras dá azar (desculpe, má sorte) porque atrai. Como resultado, o sentimento de culpa é geral e cultivado. Sendo o sentimento de culpa o mais forte instrumento de dominação que existe, e como no senso comum tudo já está respondido, não há questionamentos – portanto, não há necessidade de pensar.
É a religião perfeita para os 97% da população compostos de simplórios que já não pensam mesmo, cumprem ordens (como no nazismo), fazem o que o senso comum manda (eu me casei cedo, pela primeira vez, para cumprir a linha de montagem “formado e com emprego tem que entrar para o rol de homens sérios”).
Ou ainda para aqueles que transgridem  por baixo do pano, sentindo mais culpa e reforçando assim o senso comum através do seu companheiro, o senso como clandestino (“burro amarrado também pasta”).
Apesar de os filósofos acharem  que são um pacote só, considero o bom-senso diferente do senso comum.
Para mim, o bom-senso é o programa da lógica intuitiva com que nascemos. Nasci com o meu muito forte, de tal maneira que, quando os jesuítas me apresentaram pela primeira vez à logica formal (a apologética de são Tomás de Aquino), fiquei tão maravilhado que me tornei católico de novo (fui católico do senso comum infantil, tão tosco que, aos 13 anos, no ano de são Tomás, eu já era agnóstico).
 
DAUDT, Francisco. A maior das religiões. Folha de S. Paulo, São Paulo, 21 de agosto de 2013. 
 
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