Todo mundo morre! Esta é uma verdade inevitável a todo ser vivo. Para o ser humano, ela é também dramática: sabemos que estamos vivos, nos reconhecemos como pessoas, conferimos significados à realidade, estabelecemos relações e sabemos que um dia tudo isso terá fim.
Morte: interrupção ou conclusão da vida? De saída, podemos identificar uma dificuldade presente em nossos tempos: o silêncio a respeito da morte. Atualmente, há uma grande dificuldade para se conversar sobre o assunto e, além disso, existe uma verdadeira operação cultural de ocultamento da morte. O morrer tem se dado em alas isoladas de hospitais e os rituais fúnebres têm acontecido de forma cada vez mais asséptica em cemitérios projetados para que as pessoas não lembrem que estão num cemitério. Por outro lado, o recente fenômeno das redes sociais tem produzido, involuntariamente, verdadeiros memoriais virtuais em perfis de pessoas que, já mortas, conservados e abastecidos com mensagens, vídeos e outros elementos que reavivam suas presenças.
Cordão umbilical – A origem de nossa vida se dá em uma íntima liturgia de encontro. No ventre de uma mulher, uma célula fecundada por um homem começa a se reproduzir e desenvolver-se em complexos sistemas e aparelhos bioquímicos, até evoluir em um ser autônomo, que pode viver fora daquele ambiente.
Ali está um ser humano. Durante oito ou nove meses, porém este ser humano em desenvolvimento está imerso em uma realidade misteriosa, sobre a qual não consegue proferir nenhuma palavra. Esta realidade o sustenta e alimenta, além de ser sensível ao seu ainda primário estado emocional. Chega, porém, o momento do parto: aquele mundo tornou-se pequeno e o ser que o habita necessita agora daquilo que se encontra fora dele. Continuar lá dentro o condenaria à morte. Como último ato de seu nascimento, corta-se o cordão umbilical que o ligava à realidade mãe que o gerou. Inicia-se aí nossa maior crise existencial: se fomos desligados de nossa origem e sustento onde nos religaremos para voltarmos a nos sentir completos?
A vida humana, por isso, é uma jornada em busca da religação existencial. Se inicialmente, nos basta a ligação com quem está mais próximo, o amadurecimento que nos faz perceber a complexidade da vida nos põe em busca de ligações mais abrangentes, que nos realoquem em um novo útero. Isso se agrava exatamente com a consciência da morte: assim como fomos desligados da mãe, seremos desligados da vida. É preciso que nos religuemos a algo antes desse novo parto. Por isso, a morte é uma questão religiosa: ela se relaciona com a raiz da religião, que significa religar. O medo da morte, em boa parte, se agrava pela sensação de vazio que o final de uma vida sem ligações significativas pode trazer. E isso piora em uma cultura que nos oferece condições artificiais, que alívio imediato às dores da vida, mas não se sustentam diante de questões mais perenes.
Casas e tempestades – De certa forma, nossa história se assemelha à edificação de uma casa: erguemos paredes, abrimos portas e janelas, colorimos fachadas e interiores, plantamos jardins. Enfim: habitamos naquilo que existencialmente construímos. A tempestade da morte, porém, chegará um dia e este será o dia decisivo para a construção que erguemos. E o que sustentará essa construção não serão suas paredes, entradas ou saídas. A casa se sustentará por seus alicerces. E esses alicerces definirão se morte será para cada um de nós, a interrupção ou a conclusão da vida.
Quando a morte é interrupção da vida, todas as estruturas que erguemos para dar sentido à nossa vida desabam, revelando o vazio que existia nos alicerces sobre os quais sentamos nossos tijolos. Por outro lado, a morte chega como uma conclusão da vida quando nossa casa continua erguida, mesmo que não a habitemos mais. A tempestade também virá com força e nos trará a grande crise final. Percebemos, porém, que o tempo que vivemos não foi exclusivamente para nós, mas oferta gradativa e cada vez maior para o outro. Deixamos, assim, a casa erguida para que outros morem nela.
Qual o critério para distinguirmos uma situação da outra? A resposta para o final da vida está no início. Fomos gerados pelo encontro fecundo entre pessoas e carregamos em nós os traços genéticos e sociais de outras pessoas. É isso que nos torna humanos e que alicerça a vida. O fechamento ensimesmado, por um lado, nos desumaniza na medida em que reduz nossas relações. Construir sobre a areia movediça da particularização e do egoísmo é morrer antecipadamente e não deixar pedra sobre pedra.
Referência:
Jornal Mundo Jovem. Interrupção ou conclusão da vida? Porto Alegre, novembro de 2014.
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