O povo diz que os gordos são mentirosos e preguiçosos, andam pouco e comem mais do que confessam.
Essa visão preconceituosa está por trás do atraso da medicina no tratamento da obesidade. Quando alguém com excesso de peso procura ajuda médica, a única prescrição que leva para casa é a de reduzir o número de calorias ingeridas.
Existe recomendação mais fadada ao insucesso? É o mesmo que aconselhar o alcoólatra a beber com moderação. Quem consegue controlar a compulsão para comer ou beber não engorda nem fica bêbado.
A primeira descoberta relevante no campo da obesidade só aconteceu nos anos 1990, quando Coleman e Friedaman relataram que certos ratos eram insaciáveis porque apresentavam um defeito genético nas células do tecido adiposo, que as tornava deficientes na produção de leptina – hormônio ligado à inibição do apetite.
Foi a demonstração inequívoca de que havia fatores hormonais envolvidos na obesidade.
Logo ficou claro, entretanto, que essa visão hormonal era incompleta: 1) São raros os casos de deficiência de leptina. 2) Muitos obesos, ao contrário, produzem níveis mais altos de leptina, insulina e outros hormônios inibidores da fome, mas são pouco sensíveis a seus efeitos.
A visão atual compara a neurobiologia da obesidade à da compulsão por drogas, como cocaína ou heroína.
Quando a fome aperta, hormônios liberados pelo aparelho digestivo ativam os circuitos cerebrais de recompensa localizados no núcleo estriado. Essa área contém concentrações elevadas de endorfinas, mediadores ligados à sensação de prazer.
À medida que o estômago se distende e os alimentos progridem no trato digestivo, há liberação de hormônios que reduzem gradativamente o gosto que a refeição traz, tornando os alimentos menos atraentes. Os hormônios que estimulam ou diminuem o apetite agem por meio do ajuste fino dos prazeres à mesa.
À medida que o peso corpóreo aumenta, o organismo responde aumentando os níveis sanguíneos de leptina, insulina e outros supressores do apetite.
Como consequência, surge tolerância crescente às ações desses hormônios. Na obesidade, os circuitos de recompensa respondem mal à presença de alimentos no estômago, exigindo quantidades cada vez maiores para disparar a saciedade. Pessoas obesas precisam comer mais para experimentar a mesma sensação de plenitude acessível com quantidades menores às mais magras.
Como defende Paul Kenny, do Scripps Ressearch Institute,da Flórida: “A obesidade não é causada pela falta de força de vontade. Como nas drogas causadoras de dependência, a compulsão pela comida provoca um ‘feedback’ nos centros cerebrais de recompensa: quanto mais calorias você consome, mais fome sente e maior é a dificuldade para aplacá-la”.
Essa armadilha não lembra, de fato, a que aprisiona dependentes de nicotina, álcool ou heroína? O efeito sanfona não é comparável às recaídas dos usuários dessas drogas? Faz sentido: a evolução não criaria um sistema de recompensa para cada forma de compulsão.
Durante milhões de anos, a sobrevivência de nossos ancestrais esteve ameaçada pela escassez de alimentos. Como ativar a saciedade era preocupação secundária, a seleção natural privilegiou aqueles dotados de circuitos cerebrais mais eficientes em estimular a fome do que em suprimi-la
Os avanços da culinária, a fartura, a disponibilidade de alimentos industrializados ricos em gorduras e carboidratos, os sucos, refrigerantes, biscoitos e salgadinhos ao alcance das crianças, a cultura de passar horas à mesa e a vida sedentária criaram as condições ambientais para que a epidemia de obesidade se disseminasse.
Segundo o IBGE, há 52% de brasileiros com o excesso de peso ou obesidade, número que nos Estados Unidos ultrapassou 70%. Em poucos anos chegaremos lá.
VARELLA, Drauzio. O vício de comer. Folha de S. Paulo, São Paulo, l6 de novembro de 2013.
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